Autor: John P.A. Ioannidis, professor de medicina, epidemiologia e saúde populacional. Professor de ciências biomédicas e estatística na Universidade de Stanford. Suas publicações sobre COVID-19 pode ser acessadas por este link.
Publicação original, em inglês aqui: https://www.tabletmag.com/sections/science/articles/pandemic-science
A tradução foi feita por mim em 12 de setembro de 2021 de forma livre e com pequenas adaptações para facilitar a compreensão do leitor brasileiro, inclusive com a adição de links para referências externas que não presentes no artigo original.
Tempo estimado de leitura: 15 — 20 minutos.
No passado eu desejei, entusiasticamente, que um dia todos nós seríamos loucos apaixonados pela pesquisa científica. Eu deveria ter tido mais cuidado com os meus desejos. A crise causada pela pandemia mortal de COVID-19 e a resposta dada a ela pela sociedade fez com que bilhões de pessoas no mundo todo se tornassem amantes da ciência. Decisões tomadas em nome da ciência interferiram na vida, na morte e nas liberdades fundamentais. Tudo que era importante foi afetado pela ciência, por cientistas interpretando a ciência, e por aqueles que impõem medidas baseadas nas suas interpretações da ciência no contexto da “guerra política”.
Um problema desse novo engajamento global com a ciência e que a maioria das pessoas nunca foram expostas para valer, principalmente nós aqui no ocidente, está no método científico. Segundo as normas de Merton — o comunismo, o universalismo, o desinteresse e o ceticismo organizado — nunca foram populares nas escolas, na mídia, nem mesmo nos museus de ciência ou nos documentários sobre assuntos científicos.
Antes da pandemia, o compartilhamento de dados, protocolos e descobertas eram limitados, comprometendo o comunismo (como nas regras de Merton) no qual o método científico é embasado. Já se tolerava o fato da ciência não ser universalizada; é algo que habita um ambiente hierarquizado, acessível apenas por uma minoria elitizada. Muito dinheiro, interesse e conflitos brotaram ao redor da ciência — e a crença sobre o desinteresse foi deixada de lado.
Em relação ao ceticismo organizado, ele nunca foi bem aceito nos meios acadêmicos. Mesmo as publicações revisadas por pares apresentam, frequentemente, resultados enviesados e distorcidos.
No entanto, apesar de perceber cinicamente que as normas científicas vêm sendo negligenciadas (talvez por conta dessa mesma percepção), vozes lutando para mais comunismo, universalismo, desinteresse e ceticismo organizado vem se multiplicando nos círculos científicos antes da pandemia. Reformistas sempre foram vistos como gente que preserva padrões morais elevados, apesar de serem minoria nas posições de poder. A crise de reprodutibilidade em várias linhas de pesquisa, da biomedicina até a psicologia, causou crises de consciência e esforços para aumentar a transparência incluindo, até, o compartilhamento de dados brutos, protocolos e códigos. Diferenças dentro da academia foram progressivamente reconhecidas e tratadas. Muitas foram receptivas a pedidos de mudança.
Especialistas de opinião (ainda dominantes em comitês, sociedades profissionais, conferências, fundações e outras partes do sistema) foram frequentemente desafiados pelo criticismo baseado em evidências. Houve esforços para tornar os conflitos de interesse mais transparentes e minimizar seus impactos, mesmo quando os líderes científicos permaneciam em conflito, especialmente na medicina. Uma próspera comunidade de cientistas se dedica a métodos rigorosos, a entender vieses e a diminuir seus impactos. O campo de metapesquisa — pesquisas sobre pesquisas — tornou-se amplamente respeitado. Diante de tudo isso, alguém talvez quisesse ver a crise da pandemia mudando esse cenário. Bom, a mudança aconteceu — mas, talvez, em maior parte, para pior.
A falta de comunismo durante a pandemia alimentou escândalos e teorias da conspiração, que então foram tratadas como fatos em nome da ciência pela maioria da imprensa e nas redes sociais. A retratação de um artigo muito popular sobre hidroxicloroquina no The Lancet foi um exemplo notável: falta de compartilhamento e acesso permitiu que uma grande revista científica publicasse um artigo no qual 671 hospitais supostamente contribuíram com dados que não existiam, e ninguém percebeu isso até depois da publicação do artigo. O The New England Journal of Medicine, outra revista científica de grande importância, conseguiu publicar um artigo semelhante; muitos cientistas ainda continuam a citar esse artigo mesmo depois de uma retratação.
O assunto mais quente do momento — se o vírus da COVID-19 foi produto da evolução natural ou de um acidente de laboratório — poderia ter sido resolvido facilmente com demonstrações mínimas de comunismo (ainda no contexto das normas de Merton) da China: viabilizar o acesso aos registros de laboratório do Instituto de Virologia de Wuhan teria acalmado os ânimos imediatamente. Sem o acesso a como os experimentos foram feitos, as teorias sobre vazamento do vírus continuam se proliferando.
De um ponto de vista muito pessoal, eu não quero considerar a teoria do vazamento do vírus como a teoria dominante — um golpe duro na investigação científica. Por outro lado, se o compartilhamento público e total dos dados não acontecer mesmo diante de milhões de mortos e bilhões de afetados pela doença, que tipo de esperança existe para uma ciência com mais transparência e uma cultura de compartilhamento? Qualquer que seja a origem do vírus, resistir a cooperar dentro de normas aceitáveis já causa um enorme prejuízo por si só.
A pandemia nos levou, do dia para noite, a uma estranha forma de universalismo científico. Todo mundo fez ciência com a COVID-19. Em agosto de 2021, 330 mil artigos científicos foram publicados sobre a COVID-19 por, aproximadamente, 1 milhão de autores diferentes. Um levantamento nos mostrou que cientistas de cada uma das 174 disciplinas que nós chamamos de Ciência publicaram sobre a COVID-19. Até o final de 2020, somente a engenharia automobilística não tinha cientistas publicando sobre a COVID-19. No começo de 2021, os engenheiros automobilísticos já haviam publicado alguma coisa a respeito.
Isto representa uma mobilização de talento interdisciplinar sem precedentes. Contudo, a maioria destes trabalhos tem qualidade baixa, erros e confusões. Muitas pessoas sem conhecimento técnico na área se transformaram, da noite para o dia, em especialistas desejando salvar o mundo através da empatia. Esses especialistas espúrios se multiplicaram e abordagens baseadas em evidências — como estudos randomizados e a coleta de dados mais precisos, sem vieses — foram frequentemente descartadas como inapropriadas, lentas e perigosas. O desdenho com estudos confiáveis foi até celebrado.
Muitos cientistas fantásticos têm trabalhado com a COVID-19. Eu admiro isso. Suas contribuições nos ensinaram muito. Minha gratidão se estende aos jovens cientistas, estudiosos e extremamente talentosos, que rejuvenesceram nossa força de trabalho. Contudo, em paralelo estão os especialistas que chegaram agora com credenciais questionáveis, irrelevantes ou, até mesmo, inexistentes, assim como os dados que produzem: questionáveis, irrelevantes e quase inexistentes.
As redes sociais favoreceram o surgimento desses “experts“. Qualquer um que não seja epidemiologista ou especialista em saúde pública poderia ser citado como epidemiologista ou especialista em saúde pública por jornalistas que não sabem nada desses assuntos, mas sabiam quais opiniões seriam imediatamente aceitas como corretas. Por outro lado, alguns dos melhores epidemiologistas e especialistas em políticas de saúde dos EUA foram tachados de ignorantes e perigosos por pessoas que se julgavam aptas a qualificar diferenças de opinião científica sem compreender a metodologia ou os dados em questão.
O desinteresse sofreu demais. No passado, entidades conflitantes tentavam ocultar suas agendas. Durante a pandemia, essas mesmas entidades conflitantes foram transformadas em heroínas. Por exemplo, as Big Pharmas produziram, sim, medicamentos úteis, vacinas e outras intervenções que salvaram vidas mas, claro, sabia-se que os lucros eram e são o objetivo principal. O tabaco é conhecido por matar milhões de pessoas todos os anos e por nos confundir através da promoção de novos e velhos produtos, todos igualmente prejudiciais à saúde. Porém, durante a pandemia, pedir por mais evidência sobre a efetividade e eventos adversos era visto como uma afronta. Essa abordagem autoritária e dissimulada “em defesa da ciência” pode ter aumentado a resistência à vacinação e ao movimento antivacinas — anti-vax — desperdiçando a oportunidade única que foi criada pelo rápido e fantástico desenvolvimento de vacinas contra COVID-19. Até mesmo a indústria do tabaco fez um “upgrade” em sua própria reputação: a Phillip Morris doou respiradores para promover uma imagem de empresa responsável e de salvar vidas, uma pequena fração delas que foram colocadas em risco de morrer de COVID-19 por causa de comorbidades derivadas do consumo de cigarro.
Outras entidades potencialmente conflitantes se tornaram novas agências reguladoras, ao invés de serem reguladas. As Big Techs que ganharam trilhões de dólares em valor de mercado através da transformação digital durante os lockdowns, desenvolveram poderosas máquinas de censura que controlam o acesso das pessoas à informação dentro de suas plataformas. Consultores que fizeram milhões de dólares com empresas e governos ganharam posições de prestígio, poder e projeção social, enquanto cientistas que trabalharam de graça e foram cancelados depois que desafiaram questionar narrativas dominantes. Ceticismo organizado era visto como uma ameaça à saúde pública. Houve um conflito entre duas escolas de pensamento: o autoritarismo na saúde pública e a ciência — e a ciência perdeu.
A honesta e continuada investigação de caminhos alternativos é indispensável para a boa ciência. Na versão autoritária da saúde pública (ao contrário da participativa), essa investigação é vista como traição e deserção. A narrativa dominante era “estamos em guerra”. Estando em guerra, todos devem seguir ordens. Se um pelotão é comandado para ir à direita e alguns soldados vão para a esquerda, estes últimos são considerados desertores. Ceticismo científico precisou ser desertado, sem mais perguntas. As ordens foram claras.
Quem deu estas ordens? Quem decidiu que suas opiniões, experiência e conflitos deveriam estar no comando? Não foi uma pessoa quem decidiu, um general maluco, um político corrupto ou um ditador mas, mesmo assim, ocorreu interferência política na ciência — e muita. Fomos todos nós, um conglomerado que não tem nome ou face: uma rede de informações “meia boca” ; uma imprensa transloucada e partidária; uma proliferação de personas nas redes sociais usando pseudônimos e homônimos que levaram até cientistas sérios a perderem o controle, tornaram-se feras com um avatar cuspindo grande quantidade de absurdos sem qualquer embasamento; empresas de tecnologia ou indústrias pouco reguladas forçando sua agenda e poder de marketing; e pessoas comuns aflitas com uma crise que parece não ter fim. Tudo isso envolto num papel de boas intenções, bons raciocínios, e alguns esplêndidos sucessos científicos, mas também de conflitos, polarização política, medo, pânico, ódio, desunião, fake news, censura, desigualdades, racismo, e disfunções sociais agudas.
Debates acalorados, porém científicos, são muito bem-vindos. Críticas sérias ajudam bastante. John Tukey disse uma vez que a palavra que melhor ilustra um grupo de estatísticos é “confusão”. Isso se aplica aos cientistas também. Mas a assertiva de que “estamos em guerra” nos levou ainda mais longe: é uma guerra suja e sem dignidade. Oponentes são ameaçados, abusados e hostilizados por campanhas de cancelamento nas redes sociais, reportagens na grande mídia, e livros best-sellers são escritos por fanáticos. Declarações são distorcidas, rebatidas com falácias do espantalho e ridicularizadas. Páginas da Wikipédia foram vandalizadas. Reputações foram sistematicamente devastadas, destruídas. Muitos cientistas brilhantes foram abusados e receberam ameaças durante a pandemia com a intenção de colocá-los, assim como seus familiares, numa posição muito desconfortável.
Abusos cometidos por anônimos têm um efeito desanimador; e é pior quando os abusadores são pessoas tidas até então como respeitáveis. As únicas reações viáveis ao fanatismo e à hipocrisia são a bondade, a civilidade, a empatia e a dignidade. Contudo, o isolamento social e a vida através da Internet, das redes sociais, não alimentam essas virtudes.
A política teve uma influência deletéria na ciência das pandemias. Qualquer comentário apolítico feito por um cientista poderia ser convertido em itens de uma agenda política. Medidas sanitárias como o uso de máscaras, vacinas etc. que atendam às expectativas de um grupo político, imediatamente desagradam o outro grupo político. Esse processo corrói a adoção em massa daquilo que efetivamente funciona. Políticos transformados em agentes de saúde pública agridem não somente a ciência , mas também a opinião pública onde as pessoas deveria ser empoderadas, e não humilhadas.
Um cientista não pode e não deve mudar seus dados ou inferências com base nas doutrinas dos partidos políticos ou nas notícias do dia nas redes sociais. Em um ambiente onde as divisões políticas tradicionais entre esquerda e direita não fazem mais sentido, dados, afirmações e interpretações são tiradas de contexto e viram munição para ataques. O mesmo cientista apolítico pode ser atacado por comentaristas da esquerda em um lugar e também por comentários da direita em outro. Excelentes cientistas têm sido silenciados em meio a esse caos. Sua autocensura tem sido uma grande perda para a pesquisa científica e para a segurança pública. Meus heróis são os muitos cientistas bem intencionados que foram abusados, cancelados e ameaçados durante a pandemia. Eu respeito todos eles e sofro com o que eles têm passado, independentemente se suas posições científicas estão de acordo ou não com as minhas. Eu sofro e celebro com quem tem posições em desacordo com as minhas.
Não houve qualquer conspiração ou planejamento por trás do que estamos vendo. Simplesmente, em tempos de crise, os poderosos avançam e os fracos, sucumbem. Em meio às turbulências da pandemia, os poderosos e aqueles em conflito se tornaram mais poderosos e se colocaram ainda mais em conflito, enquanto milhões de vulneráveis morreram e bilhões estão em sofrimento.
O que me preocupa é que a ciência e suas normas compartilharam o mesmo destino dos vulneráveis. É uma pena, porque a ciência pode ajudar muita gente ainda. A ciência continua sendo a melhor coisa que poderia ter acontecido com a humanidade, pois ela pode ser tanto tolerante como tolerada.