Cães Covardes

Hmm. Nossa. O que houve?

Aquela dor… sumiu.

Que lugar é esse. Muito bonito. Uau, que bonito.

— “Oi”

Oi! Tudo bem? Nossa, que lugar é esse. Eu nem sei como vim parar aqui.

— “Aqui é o céu. Você morreu.”

Poxa. Então é assim.

— “Sim. Aqui é lindo, não?”

Demais.

Quem é você? Desculpe a pergunta…

— “Eu sou a Belinha. Aquele seu cachorro. Lembra?”

Bom, claro que lembro. Agora lembro de tudo. Minha memória andava tão fraca nesses últimos anos mas, agora, tudo ficou muito claro. Lembro-me de tudo.

— “Sim. Você vai se acostumar.”

Você está diferente. Não parece nem um pouco com um cachorro. (risos)

— “Bom, você também não se parece nem um pouco com uma pessoa.”

É verdade. (risos)

— “Como foi o resto da sua vida? Valeu a pena?”

Sim. Vivi plenamente. Vi meu filhos e netos crescerem. Acompanhei minha esposa até quando pude. E fui feliz, principalmente.

E você?

— “No meu caso é mais complicado. Como eu era um cão, não tinha a mesma consciência de uma pessoa. Somente tomei consciência da minha vida depois que morri.”

Nossa, que estranho. Que triste, também.

— “Não é. Aliás, minha vida foi muito tranquila desde quando vocês me adotaram. Só tenho a agradecer a você e à sua família por tudo que fizeram por mim.”

Você foi um cão muito fiel e amoroso conosco. Existe algo que você queria me dizer agora? já que somos, você sabe… tão parecidos.

— “Como já lhe perguntei, só queria saber se você viveu uma vida longa e proveitosa.”

Sim.

— “Naquele dia em que pessoas invadiram a sua casa enquanto você e sua família dormiam, levaram coisas que vocês tanto gostavam e que fizeram alguma falta para vocês.”

Lembro muito bem. Foi no inverno. Eu estava na metade da minha vida.

— “Entendo que você ficou furioso comigo por eu não ter latido quando eles entraram na casa. E que isso era um comportamento inaceitável para um cão como eu.”

Você tem razão. Achamos muito estranho você não ter latido. Você adorava latir. Latia para o gato, para qualquer amigo nosso que estivesse em casa. Mas não latiu para os bandidos. Por quê?

— “Foi mais forte do que eu. Um sentimento que ainda não compreendi totalmente. Eu olhava para eles ali, mas meu corpo não reagia. Nas minhas memórias percebo que eles também olhavam para mim. Riam. Faziam sinais. Provocavam meus instintos.”

Não teriam feito isso comigo. Canalhas.

— “Eu sei. Teriam sido cruéis com você. Talvez até lhe tirariam a vida bem ali. E, de certa forma, eu sentia isto. Não lati porque não queria você ali comigo. Queria ser seu escudo. Queria zelar pelo seu sono, poupando-lhe da situação que poderia interromper sua vida. Fui covarde, se entendi bem o que isso significa para vocês. Mas também creio que fui corajoso. Não deixaria que chegassem até o quarto onde você estava.”

Você não latiu, e assim eu vivi mais, certo?

— “Sim.”

Vivi a outra metade da minha vida porque você… você não latiu naquele dia. Não poderia estar mais agradecido. Existe algo que eu possa fazer por você como forma de retribuição?

— “Ao contrário de você, não tive alguém que pudesse prolongar minha vida. Então, infelizmente, vivi muito pouco. Apenas imagino tudo que vocês viveram naquela casa, e também nas viagens que fizeram. Gostaria que apenas me contasse mais sobre vocês. Imagino que memória não seja um problema neste momento.” (risos)

Não, não é. (risos) Por onde você quer que eu comece?

— “Do final. E não se apresse.” (risos)

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